Pular para o conteúdo

o traço de uma sobra: sombra – Joana Corona (2013)

3 de maio de 2013

 

o traço de uma sobra: sombra

Joana Corona

 

poesia em forma de figura, poesia para os olhos, onde ler e olhar pertencem a um único, mesmo instante. [Claudio Parmiggiani]

não tendo encontrado nada que valesse mais do que o vazio, ele deixa o espaço vago. [Joubert, por Blanchot]

retalho 2

 

 

um ruído surdo acompanha a linha do corte, a pressão da mão contra o papel – um embate. logo vem o cheiro de mofo e o pó acumulado do livro que não se lia. na estante do sebo, ele se demorava, lá de cima, na última prateleira, a imaginar quem passava. agora, é livro de muitos olhos, espaçoso. olhos cegos, olhos-fenda. uma espécie de vazio pleno o habita. mas ele escapa sempre que aberto, são muitas veias neste corpo, muitas lacunas neste texto apagado. um livro que resta. esquelético, frágil, desengonçado. sem importância, portador de não saber. e, por isso, agora um corpo-objeto a se des-ler. não imaginava: um dia seria mutilado, profanado.

desfigurou-se, para vir-a-ser figura outra,

ou, uma leitura por vir.

fenda-fuga: o livro afunda-me ao afundar-se, fugidio. às vezes, finge ser peixe, n’outras, finge nem ser. protagonista arredio, inominável, incapturável.

como ler a impossibilidade da leitura?

com violência, arma-se uma sutil biblioteca de resquícios, coleção de insignificâncias, amareladas em diferentes tons. acúmulos, empilhamentos. como um arquivo desarquivado, no qual as origens se perderam.

um livro sobre nada.

um livro como possibilidade impossível.

um livro por vir.

autor sem livro, escritor sem escrito.

retalho 4

 

 

não é apenas rastro que se vê, mas a restância do rastro, ou, ainda, quando ver-ler é perder.

um contrassenso: o gesto de ler com uma lâmina, e com ela reescrever um texto como quem desenha o vazio, como quem recorta a luz, como quem escreve a ausência da palavra.

como ver um apagamento?

os vazios expandem o espaço, alargam-no, cavam paredes, inscrevem-se. estou aqui, à margem da margem. sou este sem-lugar na página, na parede. abrigo sombras e abrigo também a própria página, que se tornou texto, neste livro do livro. sou o restar restando, o traço de uma sobra. uma forma de já não estar, estando. a presença de uma ausência latente. um vulto, um sopro, uma mancha.

a perda como protagonista de uma história sem história. a escritura do silêncio, a imagem fantasmática.

um talho, outro retalho. fragmentos de nada, abandono.

pedaços de capas, tiras de páginas amarelas e uma fita laranja: pequeno arsenal.

livro destituído, livro despatriado, uma forma de vagar, de não-ser, de naufragar.

naufrago.

 

retalho 1

 

 

 

 

 

petróleo[1]

a Claudio Parmiggiani

sombra:

carne incorpórea colada no tempo.

corpo imaterial, ou a fisicalidade do ausente.

o negativo de uma materialidade anterior –

silhueta de fumaça na parede branca.

(o que se fotografa são fantasmas)

eu sou o livro-fogo que queima, negro.

estive sempre aqui (mas isso não é visível).

agora há o resquício,

e há também a imagem que me cria,

para que eu siga sendo

este outro.

agora sou um traço de pólvora.

a fotografia-fuligem, a imagem-pó –

o livro-espectro.

 

 


[1] poema publicado originalmente na revista Lado 7, n. 4, Rio de Janeiro, 7 Letras, 2012.

From → textos

Deixe um comentário

Deixe um comentário